terça-feira, 8 de julho de 2008

Sarau do Querô emociona o Canil

Por Paulo Almeida

O Sarau do Querô – Rosas de Drummond e Guimarães propôs resgatar o clima de “A Rosa do Povo”, obra-prima do itabirano e celebrar o centenário de Guimarães Rosa, nascido em 1908, curiosamente o ano de falecimento de Machado de Assis.

“Tinha uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma pedra”. Aos brados de Paulo Almeida e Cláudio Laureatti formou-se, chamando a atenção dos presentes, um cortejo no local que removeu a pedra da entrada levando-a para o meio do Canil, com a clara intenção de manter público o Canil e oficializá-lo como ponto de encontro para as artes e a cultura.

Interpretando o poema “A Flor e a Náusea”, Paulo Almeida (preso à sua classe e às suas roupas) e Cláudio Laureatti (com os olhos sujos no relógio da torre) deram ao público uma esperança mínima. Prosseguiu o sarau!

"Cecília joga pétalas montada na burrica"

A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas
Vou de branco pela rua cinzenta
Melancolias, mercadorias espreitam-me
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse
Em vão me tento explicar, os muros são surdos
Sob a pele das palavras há cifras e códigos
O sol consola os doentes e não os renova
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase
Vomitar esse tédio sobre a cidade
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado
Nenhuma carta escrita nem recebida
Todos os homens voltam para casa
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi
Alguns achei belos, foram publicados
Crimes suaves, que ajudam a viver
Ração diária de erro, distribuída em casa
Os ferozes padeiros do mal
Os ferozes leiteiros do mal
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim
Ao menino de 1918 chamavam anarquista
Porém meu ódio é o melhor de mim
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu
Sua cor não se percebe
Suas pétalas não se abrem
Seu nome não está nos livros
É feia. Mas é realmente uma flor
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio

O Sarau do Querô prosseguiu convocando o poeta Silvio Diogo.
Tivemos em seguida as intervenções de Berimba de Jesus e Caco Pontes do Coletivo Poesia Maloqueirista.

A apresentação de Dinho Nascimento transcende qualquer comentário: Cantando versos de Drummond e em seguida de Gregório de Matos (triste Bahia, ó quão dessemelhante ), mestre Dinho também nos encantou com sua técnica solando o clássica “Berimbau Blues”, um dos pontos altos do evento.

O poeta Rui Mascarenhas conseguiu manter a alta voltagem reverberando sua poesia com todo aquele sotaque baiano, calor e malícia.

O poeta Ivan Antunes trouxe para a poesia o movimento das ruas do Largo. 13 de Maio. “Atestado médico na hora; Compro ouro, Dólar e Euro. Pago bem”, interagiu com o público de forma descontraída e criativa.
A apresentação de João Roquer e Lika Rosa (da Banda Branco Augustus) foi marcante. Com canções de autoria da dupla a bela Lika escalou o teto do Canil e cadenciada pelo violão folk de João Roquer ambos nos proporcionaram um momento lúdico e inesquecível.

Cláudio Laureatti e Paulo Almeida retornaram à cena com o poema de Drummond.

Retrato de Família

Este retrato de família
Está um tanto empoeirado
Já não se vê no rosto do pai
Quanto dinheiro ele ganhou
Nas mãos dos tios não se percebem
As viagens que ambos fizeram
A avô ficou lisa, amarela,
Sem memórias da monarquia

Os meninos, como estão mudados
O rosto de Pedro é tranqüilo
Usou os melhores sonhos
E João não é mais mentiroso

O jardim tornou-se fantástico
As flores são placas cinzentas
E a areia, sob pés extintos,
É um oceano de névoa
No semicírculo das cadeiras
Nota-se um certo movimento
As crianças trocam de lugar,
Mas sem barulho: é um retrato
Vinte anos é um grande tempo
Modela qualquer imagem
Se uma figura vai murchando,
Outra, sorrindo, se propõe

Esses estranhos assentados,
Meus parentes? Não acredito
São visitas se divertindo
Numa sala que se abre pouco
Ficaram traços de família
Perdidos no jeito dos corpos
Bastante para sugerir
Que um corpo é cheio de surpresas
A moldura deste retrato
Em vão prende seus personagens
Estão ali voluntariamente,
Saberiam — se preciso — voar
Poderiam sutilizar-se
No claro-escuro do salão,
Ir morar no fundo dos móveis
Ou no bolso de velhos coletes
A casa tem muitas gavetas
E papéis, escadas compridas
Quem sabe a malícia das coisas
Quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde
Ele me fita e se contempla
Nos meus olhos empoeirados
E no cristal se multiplicam

Os parentes mortos e vivos
Já não distingo os que se foram
Dos que restaram. Percebo apenas
A estranha idéia de família
viajando através da carne


Paulinho do Centro Acadêmico relatou aos presentes A Saga de Joselito, o sem noção. Joselito, um dos cães que perambulam pela USP, defendendo seu território atracou-se com um pitbull. Bastante prejudicado pelo entrevero o olho do animal infeccionou, serviu como hospedeiro para moscas e cheirando muito mal Joselito foi albergado em algumas casas, inclusive no Morro do Querosene de onde fugiu retornando à USP. A saga de Joselito, relatada com velas e palavras de louvação à coragem e resistência do intrépido cão, dá-nos uma idéia da solidariedade e de nossos “cãocidadãos”. É isso aí, Paulinho. Joselito é um grande exemplo para todos nós!

Aline Reis da Banda Encanta Realejo apresentou-se com o músico Léo de Abreu e também contou com a gaita de Jerônimo Pinheiro (este não se cansa de nos surpreender com sua habilidade em diversos instrumentos).
Tivemos mais intervenções dos Maloqueiristas e em determinado momento alguns poetas, entre eles Paulo Almeida e Caco Pontes mandaram os verbos acompanhados pela banda do canil em clima de improvisação.

O Sarau do Querô, em sua quinta edição, encerrou oficialmente às 23h40 com o ato simbólico de arremessar a pedra sobre os muros do Canil. Desejamos que realmente o “Espaço Fluxus de Cultura” se consolide e ofereça opção inteligente para a expressão e o convívio criativo.

Valeu Canil! Valeu USP! Valeu companheiros!

Participaram do evento:

Jerônimo Pinheiro
Coletivo Poesia Maloqueirista, com Caco Pontes e Berimba de Jesus.
Aline Reis e Léo de Abreu.
Banda Branco Augustus, com João Roquer e Lika Rosa.
Cecília Pellegrini
Dinho Nascimento, com o eletrizante berimbau blues.
Rui Mascarenhas, Ivan Antunes e o II livro do Festival de Letras/ FFLCH/ USP.

Missão Cumprida: Canil, pedra fundamental da arte compartilhada na universidade e para além dos muros.

Um comentário:

carne seca e jaba disse...

Esta edição do sarau foi muito boa valeu